Um Avião Contorna o Pé de Jatobá e a Nuvem de Agrotóxicos Pousa na Cidade - Ed. Anvisa - 2008
- Prefácio
O repórter Paulo Machado conta neste livro a
história emocionante de uma reportagem exemplar, bem pautada, bem pesquisada,
bem apurada e bem editada. São esses os ingredientes clássicos da clássica
reportagem bem realizada. Além disso, essa experiência foi enriquecida pela
necessidade que o repórter teve de executar uma cobertura multimídia – com
texto escrito, falado e imagens -- para a agência de notícias, as emissoras de
rádio e os canais de televisão da Radiobrás. Esse ponto dá ao relato uma
atualidade inédita. As redações em todo o mundo apenas começam a se estruturar
para executar jornalismo multimídia. Também nesse aspecto o caso é exemplar.
Trata-se de uma história que merece a velha
expressão “furo de reportagem”. O que é bizarro é o fato de que nem mesmo
depois de aberto o assunto pelos veículos da Radiobrás, o restante da imprensa
tenha ido atrás. Talvez porque o assunto – venenos utilizados na agricultura –
seja no mínimo polêmico e envolva interesses muito diversos. Temas assim
costumam ser evitados pela imprensa em geral. Por isso mesmo, configurou-se a
oportunidade da pauta para a Radiobrás, uma empresa pública de comunicação cujo
foco atual é o cidadão e o seu direito à informação.
Há momentos da narrativa de Paulo Machado que
merecem atenção dos leitores que se preocupam com a qualidade do jornalismo. Um
deles é o relato inicial sobre o processo que se desenrolou desde que o
repórter recebeu a notícia do grave acontecimento em Lucas do Rio Verde, até
que ele fizesse à chefia a proposta de reportagem. Poucas vezes se vê no
jornalismo atual uma pauta assim bem pesquisada e embasada antes mesmo de se
tomar a decisão de realizar a cobertura. A função de pesquisa, tão relegada na
prática atual do jornalismo, foi densa e profunda nessa reportagem.
Outro ponto alto dessa quase epopéia jornalística –
que perpassa toda a narrativa de Paulo – foi o compromisso que o repórter
manteve em todas as suas ações, com o foco da matéria: o cidadão, seja o
leitor, o ouvinte ou o telespectador. O assunto da cobertura é espinhoso, mexeu
com muitos segmentos de uma comunidade de milhares de pessoas, autoridades
municipais, estaduais e federais, sindicatos, chacareiros, fazendeiros, pilotos
de avião, com todos os cidadãos da cidade atingida, educadores, alunos das
escolas. Em uma reportagem dessa complexidade, é muito fácil um repórter
escorregar e perder o fio da meada, pender para cá ou para lá, muitas vezes até
tomar partido de um dos lados. Mas o que se vê aqui é sempre o repórter se
postando como um jornalista que está a serviço do esclarecimento do cidadão,
que tem o direito à informação. Nos momentos mais difíceis, foi essa postura
que permitiu que a serenidade imperasse. Isso faz a diferença.
Quando se vai com a leitura do livro até o final,
depara-se com um resultado que é o sonho de todo bom jornalista: saber que sua
matéria contribuiu efetivamente para encaminhar a discussão de uma questão
importante, colher resultados que indicam que o trabalho jornalístico de
conversar com a sociedade, informar e esclarecer deu bons frutos. Nesse caso isso
aconteceu, a reportagem estimulou a discussão e o aprendizado, parece que a
comunidade de Lucas do Rio Verde saiu mais consciente sobre o problema grave
que a afeta e com um caminho aberto para soluções de dentro da própria
comunidade.
Discussões atuais sobre jornalismo muitas vezes
levam ao desânimo. “A reportagem está morrendo”, ouve-se muito. É bem verdade
que a reportagem, esse oxigênio do jornalismo, está sendo relegada a plano
distante da prática de muitas redações, por motivos vários. Pode ser este o
grande motivo da crise editorial por que passa a imprensa. Por isso esse relato
de Paulo Machado é uma janela aberta de luz e ar puro para o jornalismo.
CELSO
NUCCI
Assessor
especial da Presidência da Radiobrás
- Apresentação
Descontaminando a notícia
Nuvens
pesadas, escuras, se avolumavam no vasto horizonte que seu Ivo podia avistar,
do alto da colina de sua chácara, à beira do Rio Verde, no Mato Grosso. De onde
estava, ao lado do seu grande pé de jatobá, no extremo do município de Lucas do
Rio Verde, ele enxergava muito bem. As terras da grande fazenda do outro lado
do rio, cobertas pela plantação de soja, eram varridas pelo vento forte que
prenunciava chuva certa. Seu Ivo também notou o monomotor vermelho, roncando
monótono sobre a propriedade do vizinho, em vôos baixos que iam e vinham. Fazia
pulverização. Com aquele tempo quase virado, o avião deveria estar parado, isto
sim: quando o ar está agitado, o risco de o agrotóxico se espalhar para longe
da lavoura é muito alto, ameaçando a saúde pública.
Era o dia
primeiro de março de 2006, uma quarta-feira. Seu Ivo se lembra bem quando o
aviãozinho, a não mais do que 100 metros do chão, cruzou o rio e veio fazer o
retorno bem em cima do seu Jatobá, deixando cair a nuvem destilada do herbicida
dessecante que logo iria visitar a cidade. A mulher de um outro chacareiro, a
vários quilômetros dali, conta que sentiu quando a “neblina fininha” foi
alcançá-la na varanda, para depois matar, aos poucos, as flores que ela
cultivava no jardim e nas janelas. Testemunhos parecidos viriam de outros
habitantes do município nas semanas seguintes, dando conta de que, naquele dia,
a morte bafejou os moradores, o ar, a água e os canteiros de Lucas do Rio
Verde.
Bafejou,
apenas. Não chegou a matar ninguém. Os relatos das pessoas que foram
prejudicadas, contudo, cruzaram as fronteiras do município, do Estado, e, quase
um mês depois, foram bater nos ouvidos do jornalista Paulo Machado, da
Radiobrás, numa tarde em que ele tomava um café nas proximidades da empresa.
Paulo tinha saído da redação para relaxar um pouco, quando ouviu contar da
quase tragédia de Lucas do Rio Verde. Aquilo era uma pauta e tanto, ele
reconheceu na hora, pois, embora não houvesse vítimas fatais (esse ingrediente
que, aos olhos do jornalismo convencional, tornaria o acontecido devidamente
espetacular), o episódio poderia revelar como operam as engrenagens ocultas da
linha produtiva do agronegócio, trazendo riscos, nada desprezíveis, para quem
vive abaixo dos pulverizadores aéreos. Como não havia cadáveres boiando na
correnteza do Rio Verde, o caso teria passado em branco, não fosse a
persistência de Paulo Machado. Sua utilidade é menos a de narrar um desastre
passado e mais a de evitar um desastre futuro.
Este livro
conta, em detalhes, como evoluiu a investigação que ele levou adiante, gerando
matérias em rádio, televisão e internet. Mas o livro vai muito além das
matérias conhecidas. Ao longo destas páginas, a gente se sente acompanhando
outra vez a saga do repórter, de tal modo que a narrativa se constrói no mesmo
ritmo em que os fatos são descobertos pelo seu investigador. O leitor desfruta
de uma sensação rara, que é a de entrar na pele do repórter e desbravar o
acontecido, o que dá à leitura um gosto e uma energia bem particulares. O autor
teve o capricho de transcrever na íntegra as conversas que mantinha com as
fontes, e que não eram todas aproveitadas nas reportagens que iam ao ar. Ele
também reproduz suas anotações, todas, como quem abre o próprio diário ao
leitor, mas faz isso de um modo envolvente, revelando-se suficientemente hábil
na difícil arte de prender a atenção de quem o lê. Como vários trechos de suas
anotações nunca tinham sido revelados, pois não foram aproveitados nos
noticiários, o autor consegue fazer de um caso que foi amplamente noticiado
pela Radiobrás um livro cheio de passagens absolutamente inéditas.
Absolutamente interessantes.
Principalmente
porque graves. Sem demérito nenhum para a pujança do agronegócio no Brasil, o
que não está em questão, este livro põe em relevo o uso indiscriminado de
agrotóxicos nas plantações de larga escala, uma prática que é uma espécie de
submundo do trabalho e da indústria que ainda está por ser descortinado para o
grande público. Neste trabalho, aparecem com crueza o descontrole, a vigilância
relapsa, o abuso. Do mesmo modo, revela-se aqui o modo como a comunidade – ao
menos a comunidade de Lucas do Rio Verde – pode agir e age para conhecer o
problema e para se proteger da ameaça que ele carrega. Este livro não se resume
a uma reles “denúncia”, essa coisa tão banal, muito menos se acomoda no jargão
dos discursos panfletários. Ele reconstitui e narra um fato, buscando os
diversos lados a ele relacionados, além de estudar suas raízes e iluminar suas
conseqüências. Mais que isso, registra o impacto que as próprias reportagens –
principalmente aquelas veiculadas na “Voz do Brasil” – tiveram sobre os debates
e as ações da comunidade em relação ao uso do agrotóxico. “Um avião contorna o
pé de Jatobá” é o que se pode chamar de uma boa história bem contada, com um
diferencial: o epílogo ainda está em aberto, e só será escrito pela interferência
direta dos cidadãos. É, enfim, um livro que interpela a cidadania em muitos
sentidos, mas não cai no partidarismo, no denuncismo, na demagogia.
Assim como um
dessecante conspirou contra a saúde pública na cidade de Lucas do Rio Verde, a
cidade do jornalismo vive sob a espreita peçonhenta de um certo engajamento
(que muitos acreditam ser um engajamento “do bem”) contra a precisão e a
objetividade. Como a neutralidade é impossível, e é mesmo, muitos fazem disso
um salvo-conduto para a ideologização deslavada do noticiário. Acabam por
envenená-lo, desfolhá-lo, matá-lo.
Paulo Machado,
a gente pode verificar isso ao longo destas páginas, luta resolutamente contra
esse tipo de contaminação da notícia. Embora suas simpatias – oriundas de sua
formação, de sua experiência de vida, naturalmente – levem-no a se inclinar
contra os grandes proprietários de terra, contra o agronegócio como filosofia,
é notável como ele se esforça para se livrar dos prejulgamentos. Nos
noticiários que foram ao ar pela Radiobrás, e contra isso nós tínhamos uma
disciplina quase militar, não havia a menor possibilidade de uma predileção
pessoal interferir num título, num enfoque ou mesmo na reprodução de uma fala.
Quando um envenenamento dessa natureza nos escapava, nossos editores
imediatamente procediam à correção pública do erro. A objetividade, para nós,
ao menos durante o tempo em que presidi a empresa, pelo qual posso responder,
foi uma religião. Quase fundamentalista. Éramos, por assim dizer, um grupo de
jornalistas partidários ferrenhos do apartidarismo. Portanto, muitas vezes, não
sei dizer quantas, sei que várias reportagens escritas pelo Paulo foram
ceifadas a golpes de foice ou mesmo de colheitadeiras pelas mãos dos vigilantes
editores que davam prioridade ao relato preciso, e mais nada. Na Radiobrás,
trabalhávamos para abastecer o cidadão com os fatos, de tal modo que ele
dispusesse dos insumos para formar livremente sua própria opinião. Não
queríamos e não tínhamos autorização para querer – uma vez que operávamos
recursos e equipamentos públicos, ou seja, de todos – moldar ou direcionar a
opinião de ninguém. Qualquer opinião, nos noticiários da Radiobrás, era tratada
como igual. Todas as opiniões tinham de ser iguais aos olhos do repórter e dos
editores da Radiobrás. Daí a vigilância que pesou ininterruptamente sobre o
Paulo, durante a sua apuração.
Agora, neste
livro, a pessoa do repórter aparece com muito mais nitidez. E, conforme ela vai
se revelando, em diálogo com as múltiplas disputas que se apresentavam para
interpretar e conduzir o entendimento dos fatos, ou mesmo para ciceronear o
repórter na cidade de Lucas do Rio Verde, a luta pela concisão, pela correção,
pela fidelidade às fontes, pelo respeito à inteligência do leitor vai se
tornando mais clara. Mais meritória, eu diria. O desengajamento é um serviço
público, quando s e trata de jornalismo. Neste livro, por exemplo, fica
enfaticamente demonstrado que é pelo resultado de suas reportagens precisas que
um jornalista interage com a cidadania. Ele não deve abandonar o exercício de
sua profissão para tomar partido de um ou de outro. Se conseguir apresentar um
trabalho de qualidade, digno e competente, ele terá sido útil. Sem demagogia.
Sem panfletarismo. Sem facilitações.
Para mim, que
tive o privilégio de liderar a implantação de um novo projeto jornalístico na
Radiobrás, não deixa de ser gratificante constatar que, mesmo num livro de sua
autoria, sobre o qual não deveriam pesar os cânones adotados na prática da
empresa, Paulo Machado se mantém fiel a esses princípios, sem abdicar do dever
de, num relato autoral como é este, manifestar-se, de modo ponderado, quando
sente que é indispensável. De novo, aqui, é o caso de frisar: ser apartidário
não significa ser anódino, emasculado, invertebrado, insensível. Ser
apartidário significa ser intelectualmente honesto.
Apenas para
fins de registro, as causas do agronegócio, as boas e as más, têm também os
seus estratagemas para cooptar e domesticar os operadores dos meios de
comunicação e dispõem de artifícios para interferir na mediação do debate
público. A contaminação, nessas plagas, vem de todas as direções. Daí a
necessidade, a cada dia mais premente, de que o jornalismo se dedique à
objetividade, com foco no cidadão. Ele é que tem de tomar partido, se quiser,
não o jornalista. Na Radiobrás, com todas as cautelas que a boa modéstia
recomenda, posso dizer que caminhamos uns poucos passos nesse rumo. A estatal,
antes dedicada ao triste plantio das mensagens chapa-branca para bajular
autoridades, sofreu uma guinada que lhe permitiu veicular notícias de verdade,
como as que resultaram neste livro. Foi uma trajetória fecunda e bastante
movimentada, da qual este livro de Paulo Machado, ele mesmo um autor e um
produto disso tudo, pode ser visto como síntese.
Outras séries
de reportagem multimídia foram realizadas ao longo da nossa travessia, como a
que o repórter escreveu sobre o Haiti, entre 2003 e 2006 (veja em www.agênciabrasil.gov.br/... ... ).
Este livro, não é impossível, deve ser o primeiro de uma pequena série. É um
bom começo. O jornalismo que procura se livrar do agrotóxico doutrinário e dos
anabolizantes sensacionalistas, aquele que se abastece de cadáveres, tem alguma
coisa a dizer. Melhor: tem alguma coisa a fazer dizer. Sem contaminação nem
pretensão.
Eugênio Bucci
Presidente da
Radiobrás
Livro disponível na íntegra em pdf:
Um Avião Contorna o Pé de Jatobá e a Nuvem de Agrotóxicos Pousa na Cidade
O repórter Paulo Machado conta neste livro a
história emocionante de uma reportagem exemplar, bem pautada, bem pesquisada,
bem apurada e bem editada. São esses os ingredientes clássicos da clássica
reportagem bem realizada. Além disso, essa experiência foi enriquecida pela
necessidade que o repórter teve de executar uma cobertura multimídia – com
texto escrito, falado e imagens -- para a agência de notícias, as emissoras de
rádio e os canais de televisão da Radiobrás. Esse ponto dá ao relato uma
atualidade inédita. As redações em todo o mundo apenas começam a se estruturar
para executar jornalismo multimídia. Também nesse aspecto o caso é exemplar.
Trata-se de uma história que merece a velha
expressão “furo de reportagem”. O que é bizarro é o fato de que nem mesmo
depois de aberto o assunto pelos veículos da Radiobrás, o restante da imprensa
tenha ido atrás. Talvez porque o assunto – venenos utilizados na agricultura –
seja no mínimo polêmico e envolva interesses muito diversos. Temas assim
costumam ser evitados pela imprensa em geral. Por isso mesmo, configurou-se a
oportunidade da pauta para a Radiobrás, uma empresa pública de comunicação cujo
foco atual é o cidadão e o seu direito à informação.
Há momentos da narrativa de Paulo Machado que
merecem atenção dos leitores que se preocupam com a qualidade do jornalismo. Um
deles é o relato inicial sobre o processo que se desenrolou desde que o
repórter recebeu a notícia do grave acontecimento em Lucas do Rio Verde, até
que ele fizesse à chefia a proposta de reportagem. Poucas vezes se vê no
jornalismo atual uma pauta assim bem pesquisada e embasada antes mesmo de se
tomar a decisão de realizar a cobertura. A função de pesquisa, tão relegada na
prática atual do jornalismo, foi densa e profunda nessa reportagem.
Outro ponto alto dessa quase epopéia jornalística –
que perpassa toda a narrativa de Paulo – foi o compromisso que o repórter
manteve em todas as suas ações, com o foco da matéria: o cidadão, seja o
leitor, o ouvinte ou o telespectador. O assunto da cobertura é espinhoso, mexeu
com muitos segmentos de uma comunidade de milhares de pessoas, autoridades
municipais, estaduais e federais, sindicatos, chacareiros, fazendeiros, pilotos
de avião, com todos os cidadãos da cidade atingida, educadores, alunos das
escolas. Em uma reportagem dessa complexidade, é muito fácil um repórter
escorregar e perder o fio da meada, pender para cá ou para lá, muitas vezes até
tomar partido de um dos lados. Mas o que se vê aqui é sempre o repórter se
postando como um jornalista que está a serviço do esclarecimento do cidadão,
que tem o direito à informação. Nos momentos mais difíceis, foi essa postura
que permitiu que a serenidade imperasse. Isso faz a diferença.
Quando se vai com a leitura do livro até o final,
depara-se com um resultado que é o sonho de todo bom jornalista: saber que sua
matéria contribuiu efetivamente para encaminhar a discussão de uma questão
importante, colher resultados que indicam que o trabalho jornalístico de
conversar com a sociedade, informar e esclarecer deu bons frutos. Nesse caso isso
aconteceu, a reportagem estimulou a discussão e o aprendizado, parece que a
comunidade de Lucas do Rio Verde saiu mais consciente sobre o problema grave
que a afeta e com um caminho aberto para soluções de dentro da própria
comunidade.
Discussões atuais sobre jornalismo muitas vezes
levam ao desânimo. “A reportagem está morrendo”, ouve-se muito. É bem verdade
que a reportagem, esse oxigênio do jornalismo, está sendo relegada a plano
distante da prática de muitas redações, por motivos vários. Pode ser este o
grande motivo da crise editorial por que passa a imprensa. Por isso esse relato
de Paulo Machado é uma janela aberta de luz e ar puro para o jornalismo.
CELSO
NUCCI
Assessor especial da Presidência da Radiobrás
- Apresentação
Descontaminando a notícia
Nuvens
pesadas, escuras, se avolumavam no vasto horizonte que seu Ivo podia avistar,
do alto da colina de sua chácara, à beira do Rio Verde, no Mato Grosso. De onde
estava, ao lado do seu grande pé de jatobá, no extremo do município de Lucas do
Rio Verde, ele enxergava muito bem. As terras da grande fazenda do outro lado
do rio, cobertas pela plantação de soja, eram varridas pelo vento forte que
prenunciava chuva certa. Seu Ivo também notou o monomotor vermelho, roncando
monótono sobre a propriedade do vizinho, em vôos baixos que iam e vinham. Fazia
pulverização. Com aquele tempo quase virado, o avião deveria estar parado, isto
sim: quando o ar está agitado, o risco de o agrotóxico se espalhar para longe
da lavoura é muito alto, ameaçando a saúde pública.
Era o dia
primeiro de março de 2006, uma quarta-feira. Seu Ivo se lembra bem quando o
aviãozinho, a não mais do que 100 metros do chão, cruzou o rio e veio fazer o
retorno bem em cima do seu Jatobá, deixando cair a nuvem destilada do herbicida
dessecante que logo iria visitar a cidade. A mulher de um outro chacareiro, a
vários quilômetros dali, conta que sentiu quando a “neblina fininha” foi
alcançá-la na varanda, para depois matar, aos poucos, as flores que ela
cultivava no jardim e nas janelas. Testemunhos parecidos viriam de outros
habitantes do município nas semanas seguintes, dando conta de que, naquele dia,
a morte bafejou os moradores, o ar, a água e os canteiros de Lucas do Rio
Verde.
Bafejou,
apenas. Não chegou a matar ninguém. Os relatos das pessoas que foram
prejudicadas, contudo, cruzaram as fronteiras do município, do Estado, e, quase
um mês depois, foram bater nos ouvidos do jornalista Paulo Machado, da
Radiobrás, numa tarde em que ele tomava um café nas proximidades da empresa.
Paulo tinha saído da redação para relaxar um pouco, quando ouviu contar da
quase tragédia de Lucas do Rio Verde. Aquilo era uma pauta e tanto, ele
reconheceu na hora, pois, embora não houvesse vítimas fatais (esse ingrediente
que, aos olhos do jornalismo convencional, tornaria o acontecido devidamente
espetacular), o episódio poderia revelar como operam as engrenagens ocultas da
linha produtiva do agronegócio, trazendo riscos, nada desprezíveis, para quem
vive abaixo dos pulverizadores aéreos. Como não havia cadáveres boiando na
correnteza do Rio Verde, o caso teria passado em branco, não fosse a
persistência de Paulo Machado. Sua utilidade é menos a de narrar um desastre
passado e mais a de evitar um desastre futuro.
Este livro
conta, em detalhes, como evoluiu a investigação que ele levou adiante, gerando
matérias em rádio, televisão e internet. Mas o livro vai muito além das
matérias conhecidas. Ao longo destas páginas, a gente se sente acompanhando
outra vez a saga do repórter, de tal modo que a narrativa se constrói no mesmo
ritmo em que os fatos são descobertos pelo seu investigador. O leitor desfruta
de uma sensação rara, que é a de entrar na pele do repórter e desbravar o
acontecido, o que dá à leitura um gosto e uma energia bem particulares. O autor
teve o capricho de transcrever na íntegra as conversas que mantinha com as
fontes, e que não eram todas aproveitadas nas reportagens que iam ao ar. Ele
também reproduz suas anotações, todas, como quem abre o próprio diário ao
leitor, mas faz isso de um modo envolvente, revelando-se suficientemente hábil
na difícil arte de prender a atenção de quem o lê. Como vários trechos de suas
anotações nunca tinham sido revelados, pois não foram aproveitados nos
noticiários, o autor consegue fazer de um caso que foi amplamente noticiado
pela Radiobrás um livro cheio de passagens absolutamente inéditas.
Absolutamente interessantes.
Principalmente
porque graves. Sem demérito nenhum para a pujança do agronegócio no Brasil, o
que não está em questão, este livro põe em relevo o uso indiscriminado de
agrotóxicos nas plantações de larga escala, uma prática que é uma espécie de
submundo do trabalho e da indústria que ainda está por ser descortinado para o
grande público. Neste trabalho, aparecem com crueza o descontrole, a vigilância
relapsa, o abuso. Do mesmo modo, revela-se aqui o modo como a comunidade – ao
menos a comunidade de Lucas do Rio Verde – pode agir e age para conhecer o
problema e para se proteger da ameaça que ele carrega. Este livro não se resume
a uma reles “denúncia”, essa coisa tão banal, muito menos se acomoda no jargão
dos discursos panfletários. Ele reconstitui e narra um fato, buscando os
diversos lados a ele relacionados, além de estudar suas raízes e iluminar suas
conseqüências. Mais que isso, registra o impacto que as próprias reportagens –
principalmente aquelas veiculadas na “Voz do Brasil” – tiveram sobre os debates
e as ações da comunidade em relação ao uso do agrotóxico. “Um avião contorna o
pé de Jatobá” é o que se pode chamar de uma boa história bem contada, com um
diferencial: o epílogo ainda está em aberto, e só será escrito pela interferência
direta dos cidadãos. É, enfim, um livro que interpela a cidadania em muitos
sentidos, mas não cai no partidarismo, no denuncismo, na demagogia.
Assim como um
dessecante conspirou contra a saúde pública na cidade de Lucas do Rio Verde, a
cidade do jornalismo vive sob a espreita peçonhenta de um certo engajamento
(que muitos acreditam ser um engajamento “do bem”) contra a precisão e a
objetividade. Como a neutralidade é impossível, e é mesmo, muitos fazem disso
um salvo-conduto para a ideologização deslavada do noticiário. Acabam por
envenená-lo, desfolhá-lo, matá-lo.
Paulo Machado,
a gente pode verificar isso ao longo destas páginas, luta resolutamente contra
esse tipo de contaminação da notícia. Embora suas simpatias – oriundas de sua
formação, de sua experiência de vida, naturalmente – levem-no a se inclinar
contra os grandes proprietários de terra, contra o agronegócio como filosofia,
é notável como ele se esforça para se livrar dos prejulgamentos. Nos
noticiários que foram ao ar pela Radiobrás, e contra isso nós tínhamos uma
disciplina quase militar, não havia a menor possibilidade de uma predileção
pessoal interferir num título, num enfoque ou mesmo na reprodução de uma fala.
Quando um envenenamento dessa natureza nos escapava, nossos editores
imediatamente procediam à correção pública do erro. A objetividade, para nós,
ao menos durante o tempo em que presidi a empresa, pelo qual posso responder,
foi uma religião. Quase fundamentalista. Éramos, por assim dizer, um grupo de
jornalistas partidários ferrenhos do apartidarismo. Portanto, muitas vezes, não
sei dizer quantas, sei que várias reportagens escritas pelo Paulo foram
ceifadas a golpes de foice ou mesmo de colheitadeiras pelas mãos dos vigilantes
editores que davam prioridade ao relato preciso, e mais nada. Na Radiobrás,
trabalhávamos para abastecer o cidadão com os fatos, de tal modo que ele
dispusesse dos insumos para formar livremente sua própria opinião. Não
queríamos e não tínhamos autorização para querer – uma vez que operávamos
recursos e equipamentos públicos, ou seja, de todos – moldar ou direcionar a
opinião de ninguém. Qualquer opinião, nos noticiários da Radiobrás, era tratada
como igual. Todas as opiniões tinham de ser iguais aos olhos do repórter e dos
editores da Radiobrás. Daí a vigilância que pesou ininterruptamente sobre o
Paulo, durante a sua apuração.
Agora, neste
livro, a pessoa do repórter aparece com muito mais nitidez. E, conforme ela vai
se revelando, em diálogo com as múltiplas disputas que se apresentavam para
interpretar e conduzir o entendimento dos fatos, ou mesmo para ciceronear o
repórter na cidade de Lucas do Rio Verde, a luta pela concisão, pela correção,
pela fidelidade às fontes, pelo respeito à inteligência do leitor vai se
tornando mais clara. Mais meritória, eu diria. O desengajamento é um serviço
público, quando s e trata de jornalismo. Neste livro, por exemplo, fica
enfaticamente demonstrado que é pelo resultado de suas reportagens precisas que
um jornalista interage com a cidadania. Ele não deve abandonar o exercício de
sua profissão para tomar partido de um ou de outro. Se conseguir apresentar um
trabalho de qualidade, digno e competente, ele terá sido útil. Sem demagogia.
Sem panfletarismo. Sem facilitações.
Para mim, que
tive o privilégio de liderar a implantação de um novo projeto jornalístico na
Radiobrás, não deixa de ser gratificante constatar que, mesmo num livro de sua
autoria, sobre o qual não deveriam pesar os cânones adotados na prática da
empresa, Paulo Machado se mantém fiel a esses princípios, sem abdicar do dever
de, num relato autoral como é este, manifestar-se, de modo ponderado, quando
sente que é indispensável. De novo, aqui, é o caso de frisar: ser apartidário
não significa ser anódino, emasculado, invertebrado, insensível. Ser
apartidário significa ser intelectualmente honesto.
Apenas para
fins de registro, as causas do agronegócio, as boas e as más, têm também os
seus estratagemas para cooptar e domesticar os operadores dos meios de
comunicação e dispõem de artifícios para interferir na mediação do debate
público. A contaminação, nessas plagas, vem de todas as direções. Daí a
necessidade, a cada dia mais premente, de que o jornalismo se dedique à
objetividade, com foco no cidadão. Ele é que tem de tomar partido, se quiser,
não o jornalista. Na Radiobrás, com todas as cautelas que a boa modéstia
recomenda, posso dizer que caminhamos uns poucos passos nesse rumo. A estatal,
antes dedicada ao triste plantio das mensagens chapa-branca para bajular
autoridades, sofreu uma guinada que lhe permitiu veicular notícias de verdade,
como as que resultaram neste livro. Foi uma trajetória fecunda e bastante
movimentada, da qual este livro de Paulo Machado, ele mesmo um autor e um
produto disso tudo, pode ser visto como síntese.
Outras séries
de reportagem multimídia foram realizadas ao longo da nossa travessia, como a
que o repórter escreveu sobre o Haiti, entre 2003 e 2006 (veja em www.agênciabrasil.gov.br/... ... ).
Este livro, não é impossível, deve ser o primeiro de uma pequena série. É um
bom começo. O jornalismo que procura se livrar do agrotóxico doutrinário e dos
anabolizantes sensacionalistas, aquele que se abastece de cadáveres, tem alguma
coisa a dizer. Melhor: tem alguma coisa a fazer dizer. Sem contaminação nem
pretensão.
Eugênio Bucci
Presidente da
Radiobrás
Livro disponível na íntegra em pdf:
Um Avião Contorna o Pé de Jatobá e a Nuvem de Agrotóxicos Pousa na Cidade
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