Livros

Um Avião Contorna o Pé de Jatobá e a Nuvem de Agrotóxicos Pousa na Cidade - Ed. Anvisa - 2008

 

 

 - Prefácio


O repórter Paulo Machado conta neste livro a história emocionante de uma reportagem exemplar, bem pautada, bem pesquisada, bem apurada e bem editada. São esses os ingredientes clássicos da clássica reportagem bem realizada. Além disso, essa experiência foi enriquecida pela necessidade que o repórter teve de executar uma cobertura multimídia – com texto escrito, falado e imagens -- para a agência de notícias, as emissoras de rádio e os canais de televisão da Radiobrás. Esse ponto dá ao relato uma atualidade inédita. As redações em todo o mundo apenas começam a se estruturar para executar jornalismo multimídia. Também nesse aspecto o caso é exemplar.

Trata-se de uma história que merece a velha expressão “furo de reportagem”. O que é bizarro é o fato de que nem mesmo depois de aberto o assunto pelos veículos da Radiobrás, o restante da imprensa tenha ido atrás. Talvez porque o assunto – venenos utilizados na agricultura – seja no mínimo polêmico e envolva interesses muito diversos. Temas assim costumam ser evitados pela imprensa em geral. Por isso mesmo, configurou-se a oportunidade da pauta para a Radiobrás, uma empresa pública de comunicação cujo foco atual é o cidadão e o seu direito à informação.

Há momentos da narrativa de Paulo Machado que merecem atenção dos leitores que se preocupam com a qualidade do jornalismo. Um deles é o relato inicial sobre o processo que se desenrolou desde que o repórter recebeu a notícia do grave acontecimento em Lucas do Rio Verde, até que ele fizesse à chefia a proposta de reportagem. Poucas vezes se vê no jornalismo atual uma pauta assim bem pesquisada e embasada antes mesmo de se tomar a decisão de realizar a cobertura. A função de pesquisa, tão relegada na prática atual do jornalismo, foi densa e profunda nessa reportagem.

Outro ponto alto dessa quase epopéia jornalística – que perpassa toda a narrativa de Paulo – foi o compromisso que o repórter manteve em todas as suas ações, com o foco da matéria: o cidadão, seja o leitor, o ouvinte ou o telespectador. O assunto da cobertura é espinhoso, mexeu com muitos segmentos de uma comunidade de milhares de pessoas, autoridades municipais, estaduais e federais, sindicatos, chacareiros, fazendeiros, pilotos de avião, com todos os cidadãos da cidade atingida, educadores, alunos das escolas. Em uma reportagem dessa complexidade, é muito fácil um repórter escorregar e perder o fio da meada, pender para cá ou para lá, muitas vezes até tomar partido de um dos lados. Mas o que se vê aqui é sempre o repórter se postando como um jornalista que está a serviço do esclarecimento do cidadão, que tem o direito à informação. Nos momentos mais difíceis, foi essa postura que permitiu que a serenidade imperasse. Isso faz a diferença.

Quando se vai com a leitura do livro até o final, depara-se com um resultado que é o sonho de todo bom jornalista: saber que sua matéria contribuiu efetivamente para encaminhar a discussão de uma questão importante, colher resultados que indicam que o trabalho jornalístico de conversar com a sociedade, informar e esclarecer deu bons frutos. Nesse caso isso aconteceu, a reportagem estimulou a discussão e o aprendizado, parece que a comunidade de Lucas do Rio Verde saiu mais consciente sobre o problema grave que a afeta e com um caminho aberto para soluções de dentro da própria comunidade.

Discussões atuais sobre jornalismo muitas vezes levam ao desânimo. “A reportagem está morrendo”, ouve-se muito. É bem verdade que a reportagem, esse oxigênio do jornalismo, está sendo relegada a plano distante da prática de muitas redações, por motivos vários. Pode ser este o grande motivo da crise editorial por que passa a imprensa. Por isso esse relato de Paulo Machado é uma janela aberta de luz e ar puro para o jornalismo.





CELSO NUCCI

 Assessor especial da Presidência da Radiobrás


- Apresentação


Descontaminando a notícia

Nuvens pesadas, escuras, se avolumavam no vasto horizonte que seu Ivo podia avistar, do alto da colina de sua chácara, à beira do Rio Verde, no Mato Grosso. De onde estava, ao lado do seu grande pé de jatobá, no extremo do município de Lucas do Rio Verde, ele enxergava muito bem. As terras da grande fazenda do outro lado do rio, cobertas pela plantação de soja, eram varridas pelo vento forte que prenunciava chuva certa. Seu Ivo também notou o monomotor vermelho, roncando monótono sobre a propriedade do vizinho, em vôos baixos que iam e vinham. Fazia pulverização. Com aquele tempo quase virado, o avião deveria estar parado, isto sim: quando o ar está agitado, o risco de o agrotóxico se espalhar para longe da lavoura é muito alto, ameaçando a saúde pública.

Era o dia primeiro de março de 2006, uma quarta-feira. Seu Ivo se lembra bem quando o aviãozinho, a não mais do que 100 metros do chão, cruzou o rio e veio fazer o retorno bem em cima do seu Jatobá, deixando cair a nuvem destilada do herbicida dessecante que logo iria visitar a cidade. A mulher de um outro chacareiro, a vários quilômetros dali, conta que sentiu quando a “neblina fininha” foi alcançá-la na varanda, para depois matar, aos poucos, as flores que ela cultivava no jardim e nas janelas. Testemunhos parecidos viriam de outros habitantes do município nas semanas seguintes, dando conta de que, naquele dia, a morte bafejou os moradores, o ar, a água e os canteiros de Lucas do Rio Verde.

Bafejou, apenas. Não chegou a matar ninguém. Os relatos das pessoas que foram prejudicadas, contudo, cruzaram as fronteiras do município, do Estado, e, quase um mês depois, foram bater nos ouvidos do jornalista Paulo Machado, da Radiobrás, numa tarde em que ele tomava um café nas proximidades da empresa. Paulo tinha saído da redação para relaxar um pouco, quando ouviu contar da quase tragédia de Lucas do Rio Verde. Aquilo era uma pauta e tanto, ele reconheceu na hora, pois, embora não houvesse vítimas fatais (esse ingrediente que, aos olhos do jornalismo convencional, tornaria o acontecido devidamente espetacular), o episódio poderia revelar como operam as engrenagens ocultas da linha produtiva do agronegócio, trazendo riscos, nada desprezíveis, para quem vive abaixo dos pulverizadores aéreos. Como não havia cadáveres boiando na correnteza do Rio Verde, o caso teria passado em branco, não fosse a persistência de Paulo Machado. Sua utilidade é menos a de narrar um desastre passado e mais a de evitar um desastre futuro.

Este livro conta, em detalhes, como evoluiu a investigação que ele levou adiante, gerando matérias em rádio, televisão e internet. Mas o livro vai muito além das matérias conhecidas. Ao longo destas páginas, a gente se sente acompanhando outra vez a saga do repórter, de tal modo que a narrativa se constrói no mesmo ritmo em que os fatos são descobertos pelo seu investigador. O leitor desfruta de uma sensação rara, que é a de entrar na pele do repórter e desbravar o acontecido, o que dá à leitura um gosto e uma energia bem particulares. O autor teve o capricho de transcrever na íntegra as conversas que mantinha com as fontes, e que não eram todas aproveitadas nas reportagens que iam ao ar. Ele também reproduz suas anotações, todas, como quem abre o próprio diário ao leitor, mas faz isso de um modo envolvente, revelando-se suficientemente hábil na difícil arte de prender a atenção de quem o lê. Como vários trechos de suas anotações nunca tinham sido revelados, pois não foram aproveitados nos noticiários, o autor consegue fazer de um caso que foi amplamente noticiado pela Radiobrás um livro cheio de passagens absolutamente inéditas. Absolutamente interessantes.

Principalmente porque graves. Sem demérito nenhum para a pujança do agronegócio no Brasil, o que não está em questão, este livro põe em relevo o uso indiscriminado de agrotóxicos nas plantações de larga escala, uma prática que é uma espécie de submundo do trabalho e da indústria que ainda está por ser descortinado para o grande público. Neste trabalho, aparecem com crueza o descontrole, a vigilância relapsa, o abuso. Do mesmo modo, revela-se aqui o modo como a comunidade – ao menos a comunidade de Lucas do Rio Verde – pode agir e age para conhecer o problema e para se proteger da ameaça que ele carrega. Este livro não se resume a uma reles “denúncia”, essa coisa tão banal, muito menos se acomoda no jargão dos discursos panfletários. Ele reconstitui e narra um fato, buscando os diversos lados a ele relacionados, além de estudar suas raízes e iluminar suas conseqüências. Mais que isso, registra o impacto que as próprias reportagens – principalmente aquelas veiculadas na “Voz do Brasil” – tiveram sobre os debates e as ações da comunidade em relação ao uso do agrotóxico. “Um avião contorna o pé de Jatobá” é o que se pode chamar de uma boa história bem contada, com um diferencial: o epílogo ainda está em aberto, e só será escrito pela interferência direta dos cidadãos. É, enfim, um livro que interpela a cidadania em muitos sentidos, mas não cai no partidarismo, no denuncismo, na demagogia.

Assim como um dessecante conspirou contra a saúde pública na cidade de Lucas do Rio Verde, a cidade do jornalismo vive sob a espreita peçonhenta de um certo engajamento (que muitos acreditam ser um engajamento “do bem”) contra a precisão e a objetividade. Como a neutralidade é impossível, e é mesmo, muitos fazem disso um salvo-conduto para a ideologização deslavada do noticiário. Acabam por envenená-lo, desfolhá-lo, matá-lo.

Paulo Machado, a gente pode verificar isso ao longo destas páginas, luta resolutamente contra esse tipo de contaminação da notícia. Embora suas simpatias – oriundas de sua formação, de sua experiência de vida, naturalmente – levem-no a se inclinar contra os grandes proprietários de terra, contra o agronegócio como filosofia, é notável como ele se esforça para se livrar dos prejulgamentos. Nos noticiários que foram ao ar pela Radiobrás, e contra isso nós tínhamos uma disciplina quase militar, não havia a menor possibilidade de uma predileção pessoal interferir num título, num enfoque ou mesmo na reprodução de uma fala. Quando um envenenamento dessa natureza nos escapava, nossos editores imediatamente procediam à correção pública do erro. A objetividade, para nós, ao menos durante o tempo em que presidi a empresa, pelo qual posso responder, foi uma religião. Quase fundamentalista. Éramos, por assim dizer, um grupo de jornalistas partidários ferrenhos do apartidarismo. Portanto, muitas vezes, não sei dizer quantas, sei que várias reportagens escritas pelo Paulo foram ceifadas a golpes de foice ou mesmo de colheitadeiras pelas mãos dos vigilantes editores que davam prioridade ao relato preciso, e mais nada. Na Radiobrás, trabalhávamos para abastecer o cidadão com os fatos, de tal modo que ele dispusesse dos insumos para formar livremente sua própria opinião. Não queríamos e não tínhamos autorização para querer – uma vez que operávamos recursos e equipamentos públicos, ou seja, de todos – moldar ou direcionar a opinião de ninguém. Qualquer opinião, nos noticiários da Radiobrás, era tratada como igual. Todas as opiniões tinham de ser iguais aos olhos do repórter e dos editores da Radiobrás. Daí a vigilância que pesou ininterruptamente sobre o Paulo, durante a sua apuração.

Agora, neste livro, a pessoa do repórter aparece com muito mais nitidez. E, conforme ela vai se revelando, em diálogo com as múltiplas disputas que se apresentavam para interpretar e conduzir o entendimento dos fatos, ou mesmo para ciceronear o repórter na cidade de Lucas do Rio Verde, a luta pela concisão, pela correção, pela fidelidade às fontes, pelo respeito à inteligência do leitor vai se tornando mais clara. Mais meritória, eu diria. O desengajamento é um serviço público, quando s e trata de jornalismo. Neste livro, por exemplo, fica enfaticamente demonstrado que é pelo resultado de suas reportagens precisas que um jornalista interage com a cidadania. Ele não deve abandonar o exercício de sua profissão para tomar partido de um ou de outro. Se conseguir apresentar um trabalho de qualidade, digno e competente, ele terá sido útil. Sem demagogia. Sem panfletarismo. Sem facilitações.

Para mim, que tive o privilégio de liderar a implantação de um novo projeto jornalístico na Radiobrás, não deixa de ser gratificante constatar que, mesmo num livro de sua autoria, sobre o qual não deveriam pesar os cânones adotados na prática da empresa, Paulo Machado se mantém fiel a esses princípios, sem abdicar do dever de, num relato autoral como é este, manifestar-se, de modo ponderado, quando sente que é indispensável. De novo, aqui, é o caso de frisar: ser apartidário não significa ser anódino, emasculado, invertebrado, insensível. Ser apartidário significa ser intelectualmente honesto.

Apenas para fins de registro, as causas do agronegócio, as boas e as más, têm também os seus estratagemas para cooptar e domesticar os operadores dos meios de comunicação e dispõem de artifícios para interferir na mediação do debate público. A contaminação, nessas plagas, vem de todas as direções. Daí a necessidade, a cada dia mais premente, de que o jornalismo se dedique à objetividade, com foco no cidadão. Ele é que tem de tomar partido, se quiser, não o jornalista. Na Radiobrás, com todas as cautelas que a boa modéstia recomenda, posso dizer que caminhamos uns poucos passos nesse rumo. A estatal, antes dedicada ao triste plantio das mensagens chapa-branca para bajular autoridades, sofreu uma guinada que lhe permitiu veicular notícias de verdade, como as que resultaram neste livro. Foi uma trajetória fecunda e bastante movimentada, da qual este livro de Paulo Machado, ele mesmo um autor e um produto disso tudo, pode ser visto como síntese.

Outras séries de reportagem multimídia foram realizadas ao longo da nossa travessia, como a que o repórter escreveu sobre o Haiti, entre 2003 e 2006 (veja em www.agênciabrasil.gov.br/... ... ). Este livro, não é impossível, deve ser o primeiro de uma pequena série. É um bom começo. O jornalismo que procura se livrar do agrotóxico doutrinário e dos anabolizantes sensacionalistas, aquele que se abastece de cadáveres, tem alguma coisa a dizer. Melhor: tem alguma coisa a fazer dizer. Sem contaminação nem pretensão.



Eugênio Bucci

Presidente da Radiobrás


Livro disponível na íntegra em pdf:

Um Avião Contorna o Pé de Jatobá e a Nuvem de Agrotóxicos Pousa na Cidade 


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